JORGE
DE SENA (1919)
Glosa de
Menandro
«Morrem
jovens os que os deuses amam», dizia o poeta.
E eu
pergunto: morrem velhos os que eles detestam?
O sábio
antigo, cheio de rugas e barbas,
com os
olhos vazios, de estátua, resumando
a sageza
acumulada nas vigílias austeras
(ou não)
– os dueses detestavam-no?
Entre a
juventude e o amor dos deuses,
não
teria ele escolhido a dor de envelhecer desamado
no vácuo
ardor das paisagens marinhas
em que os deuses são a ausência de uma
humanidade?
Ou nâo teriam deuses escolhidos que ele
escolhesse a dor de nâo armá-los, quando,
na plenitude marinha dos ventos e das
águas,
os deuses sâo tâo-só o oceano sob o céu
azul,
o céu zul tão-só no ocveano reflectido,
o olhar vazio como o vento entre ambos?
Em
Creta, com o Minotauro
I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiro no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá
estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas
se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o
respeito
necessário à roupa que se veste e que
prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por
acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é
esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste
mundo
quando não acredito em outro, e só outro
quererie que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me
esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos
da vida.
É metade boi e metade homem, como todos
os homems.
Violava e devorava virgems, como todas as
bestas
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso
de Racine,
que
Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da «langue».
Pai de
Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu,o
herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da p...
riu-lhe
no focinho respeitável.
O
Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol
serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias
de ninfas e de efebos desempregados,
se
cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o
açúcar que mexeremos como o dedo sujo
de
investigar as origems da vida.
III
É aí que
eu quero reencontrar-me de eter deixado
a vida
pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele
pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como
toda a gente, não sabe português.
Também
eu não seu grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos
em volapuque, já
que
nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não
falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda
esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando
somos
os
escravos de outros. Au café
diremos
um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com
pátria non compram e nos vendem, à falta
de
pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não
se pertenecer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
aromático
e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da
Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo
e que eu, com filial ternura,
verei
escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem
herdou, se do pai, se da mãe,
os
cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre
fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à
Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente
patrióticos.
V
Em
Creta, com o Minotauro,
sem
versos e sem vida,
sem
pátrias e sem espírito,
sem
nada, nem ninguém,
que nâo
o dedo sujo,
hei-de
tomar em paz o meu café.
Ganimedes
Os
pensamentos pastam na verdura,
balindo
mansamente em torno dele,
e o rio
corre sussurrante em pedras
que as
sombras do arvoredo fazem negras.
Numa
árvore se encosta o torso magro
que os
cotovelos finca nos erguidos joelhos,
enquanto
as finas ancas pousam na verdura
e de uma
sombra entre elas pende uma brancura.
Delicados
e firmes, os labios se comtraem
na tersa
flauta em que seus dedos dançam
ao mesmo
tempo segurando-a leves.
Quase é
silêncio a curta melodia.
De fundo
e vítreo azul que imobiliza
o campo
e o arvoredo, um ponto negro vem
crescendo
em asas, garras, bico adunco
entreaberto
à frente de sangíneos olhos.
E adeja
no alto, imensa e monstruosa,
uma ave
gigantesca. Os pensamentos sentem-na,
que os
faz fugir, dispersos, assustados.
A
melodia se suspende. O pastor olha.
Numa
surpresa vê que as asas se desabam
sobre
ele, escurecendo e recobrindo tudo.
Quando
abre os ohlos, elas voam vastas
entre
ele e o azul, e as garras pela cinta o cingem.
Lá em
baixo o rio brilha entre o arvoredo,
e pontos
brancos, vagos, são o seu rebanho.
O bico
hiante à sua boca chega
numa
doçura a adormentá-lo inteiro.
E a
nigridão se acende pouco a pouco
de um
resplendor de carne que é o do céu em volta,
e que o
rodeia e rasga de um calor ardente
em que
seu corpo avança como un róseo dardo.
Mas quem
avança em quem? O deus se entrega,
ou é
quem viola, e como, o corpo arrebatado?
Quem é
senhor de quem? Ou sempre, ou mútuamente?
Ou cada
um se humilda à sujeição do outro?
E mais:
sem que o soubesse, aquele humano estava
já
destinado às garras longamente curvas?
Ou por
acaso foi que o deus se apaixanou?
E essa
paixão durou? E que destino teve
o
rebanho dispersado em susto? E a flauta
que
entre a verdura mal se vê, perdida?
E o
corpo do pastor, que pensa agora?
Só isto
– o decisivo – não sabemos.